sábado, dezembro 22, 2007

A Besta Esfolada - Mas que adultíssimas bestas!

A Besta Esfolada», por Goulart Nogueira
Tempo Presente, Agosto de 1959

De um dos nossos colaboradores que escrevem assuntos filosóficos, houve, em diversas ocasiões, quem dissesse: «Argumentação infantil...». O público «snob» e «intelectual» que fez as terças feiras clássicas do Tivoli, que, como gélida corrente, mete observações disparatadas no Centro Nacional de Cultura (ou, se é mulher, profere adoráveis dislates articulados a uma torneada perna cruzada que se balanceia), o público «definitivo» e «informado» de A Brasileira, o público da Bénard, e mais o público atafulhado de folhas «culturais» de cinema, o público «consciente», o público «responsável», o público «parvenu» à cultura e cheio de embófia, o público aldrabão, ou ignorante, ou parvo, ou precipitado, ou venenoso, ou primário, ou cobarde, ou gregário, quer seja público que lê, quer seja multidão que escreve, o público que, sabendo embora algo de alguma coisa, ou até não sabendo nada de nada, desembesta a falar de tudo, mesmo do que não sabe, e a julgar e criticar tudo, mesmo o que não estudou – esse público acha pobre, banal, «infantil» e fraco o nosso colaborador. Esse público há de classificar de igual modo certas argumentações fundamentais de Zenão de Elea, de Platão, de Hegel, de Gentile. Porque esse público, à semelhança das beatas diluindo se sob o vaporizador de pregadores barrocos ou delicodoces, admira somente os palavrões científicos, o raciocínio obscuro, o rapto lírico, a solene gravidade, a acrobacia de circo, a retórica balofa e ardorosa, a sensação, o discurso, o sentimentalismo, a complicação intelectual, a pirueta humorística. Ao tal público sempre lhe repugnou – que horror! – a simplicidade, a razão, a evidência, o equacionamento básico das questões. Mas quando tudo se entrança, apenas com palavras como «problemática», «fenomenológico», «super estrutura», «ambiguidade», «existentivo», ou quando, de olhos em alvo, se valsa, ao ritmo de «liberdade» e «dignidade humana» – ah! então, sim, os severos senhores, as damas, as meninas namoradas, os católicos progressivos, os cineclubistas, os rabiscadores de jornais, os «surrealistas» de pacotilha, os «monárquicos» do Chiado, os «nacionalistas» «históricos», os leitores dos «Poètes d’aujourd’hui», os que não falham às estreias, os idólatras de Brecht ou de Becket ou de Ionesco, são percorridos por um murmúrio de admiração «formidável», o pescoço descai lhes um bocadinho para a banda, fazem boquinha pregueada e confirmante («Isto sim!»), chegam a ter delírios de admiração e gritos selvagens de aplauso àqueles crisóstomos. Mas que adultíssimas bestas!

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