terça-feira, junho 26, 2007

Karl Wissemann - IV

Não quero deixar de publicar - na íntegra - o "postfacio" de Alfredo Pimenta à obra de Wissemann. Trata-se de um dos documentos mais pungentes que em toda a minha vida li. Marcou-me de tal forma na minha juventude que ainda hoje recordo de cor partes inteiras desta "Na hora da Tragédia".

Penso que só um Homem como Pimenta poderia ter complementado o génio e o amor pátrio de Wissemann.

NA HORA DA TRAGÉDIA

Debatem-se, dentro de mim, os sentimentos mais diversos: a indignação, a cólera, a revolta, o desespero, o nojo, a piedade, o assombro, a ternura, a admiração, o ódio! Relâmpagos de ódio cruzam o céu da minha consciência onde nunca, em seis décadas de existência, o Ódio ousara pôr pé... Só um sentimento, graças a Deus, se não manifesta, nem no meu espírito, nem no meu coração, nem nos meus nervos: o medo!
Voltou-se a página mais negra de quantas existem na História do mundo. Até ao último instante esperei que um rebate de consciência florisse no deserto empedernido que é a alma dos algozes. Até ao último instante esperei que a voz augusta do único Poder espiritual do mundo se erguesse, na majestade magnífica da sua natureza transcendente e dissesse a palavra justa, lógica e necessária.
Nada! Os algozes arregaçaram as mangas das suas vestes, esticaram os seus músculos, experimentaram a fidelidade diabólica das cordas das forcas, e as dez vítimas subiram os degraus destas e foram imoladas ao rancor impiedoso da vitória das Democracias.
E no mundo inteiro - calaram-se os que deviam falar, fizeram-se cúmplices os que deviam arredar de si toda a suspeita de cumplicidade, conformaram-se todos os que, por dever moral, deviam protestar. No mundo inteiro, só se ouviu o correr das cordas das forcas nos seus nós e a agonia rápida dos mártires...
«Providência, onde estás»?...
E voltou-se a página mais negra de quantas se escreveram na História...
Todos os autores ou ajudantes dos feitos tenebrosos que vêm dos circos romanos às liquidações purgativas da França e da Itália nos anos terríveis de 1945 a 1946 são anjos de diafaneidade celestial, postos em confronto com o horror de Nuremberga.
Todos esses, os organizadores dos suplícios romanos, as plebes amotinadas e fanáticas, os tribunais terroristas, os perseguidores e caçadores de homens, na França e Itália, os nossos Buiças, Costas e Dentes de Ouro, todos esses que firmaram na História, um nome ou um lugar e donde, eternamente, como das mãos de Macbeth, escorrerá sangue, todos esses agiram sob a paixão encolerizada, empolgados pela fascinação que cega, e, muitos deles, arriscando a própria vida.
Mas os famosos juízes de Nuremberga, implacavelmente frios, não têm a mesma ligeira sombra de desculpa. Foram, durante meses e meses, sempre os mesmos. Durante horas, em cada dia, tiveram na sua presença, inermes, abandonados, vencidos, vinte homens que mal podiam falar, porque lhes tapavam a boca, que mal se podiam defender porque lhes coarctavam a defesa, e que se sentiam de minuto a minuto, ameaçados de sucumbir diante das calúnias e das infâmias com que os vencedores os atacavam.
E estes juízes de Nuremberga que antes de julgar já chamavam «criminosos» a esses desgraçados; estes juízes de Nuremberga que falaram em nome dum Direito que eles próprios formularam; estes juízes de Nuremberga, assombro do mundo, da História, da Moral, da fé cristã, da Honra e da piedade das feras, mandaram, um dia, pendurar nas cordas das forcas dez dos vinte e um homens que escolheram a dedo, à sombra de um Direito que não existia, à sombra de fundamentos que toda a gente desconhece e que foram aqueles, só porque apeteceu ao vencedor que eles fossem...
Alguns haviam de ser; calhou que fossem aqueles...
A morte é a morte; mas há várias maneiras de morte. Segundo o convencionalismo humano, há a morte infamante e que degrada, e a morte que, apesar de tudo, enobrece. E assim se tem por morte infamante, a morte na forca, e por morte que não envilece, principalmente para quem vestiu uma farda, a morte por fuzilamento. Os juízes de Nuremberga escolheram a morte infamante... Cuidam eles que, por não se ter vertido sangue, as onze mortes que são a sua obra serão mudas e estéreis.
Pobres criaturas tão mesquinhas de espírito, como áridas de sentimento! Incapazes de compreender que, para além do rancor que anima as seitas de que foram instrumentos passivos, mas responsáveis, há um Juízo que o transcende, em projecção e natureza, os juízes de Nuremberga não perceberam que o martírio que aplicaram às suas vítimas, as purificou de todo o pecado, as inocentou de toda a culpa, e as santificou perante a consciência humana, que não se regula pelos ditames do vencedor, só porque o é, portanto pelos caprichos da Democracia a que eles, juízes de Nuremberga, obedeceram!
Os enforcados de Nuremberga, já ultrapassaram, a esta hora, os pareceres da propaganda mefítica que os fariseus estão a desencadear e continuarão a desencadear, e entraram no culto fervoroso e desinteressado de todas as almas que um catolicismo falso, de fachada, e utilitário, não perverteu nem corrompeu.
Entraram na imortalidade sagrada que abre as portas do Martirológio de todas as pátrias e, neste caso, do Martirológio universal. Foram vítimas do seu amor profundo à sua terra natal, da sua dedicação levada ao último extremo pela glória da sua terra, pela grandeza da sua civilização, pela perenidade dos princípios em que todos nós comungamos - todos nós os que repelimos, com altivez e decisão, a invasão hebraica e a invasão bolchevista.
Subiram os degraus da forca, algemados, porque os seus algozes, até nesse momento supremo, temeram o desvairo heróico das pobres vítimas.
Mas as algemas que lhes prendiam os pulsos débeis são, a esta hora, as cadeias de bronze inquebráveis que soldam os nomes dos juízes de Nuremberga ao ergástulo eterno que é o destino fatal dos que ofendem o Direito e a Justiça, a Piedade e a Honra.
Deixem passar as horas, deixem rolar o mundo...
Assim como de sob as bruma venenosas que cobrem os pântanos, rompem um dia, quando o vento fresco do norte sopra, flores imarcessíveis de beleza aliciante, também de sob o nevoeiro maldito que ainda hoje pesa sobre Nuremberga surgirão, um dia, na soberana imaculidade da sua natureza, as memórias dos enforcados dessa cidade.
Aqueles que a «justiça» democrática de Nuremberga fulminou «foram queimados, e as suas cinzas lançadas ao vento, secretamente».
Secretamente?...
Não foram centenas, foram milhões de homens que, na Alemanha e fora dela, viram, sem a mais leve sombra de dúvida, subir no espaço milhares de estrelas de luminosidade penetrante, à hora em que as cinzas dos mártires de Nuremberga eram secretamente lançadas ao vento. Levou--as o vento, mais generoso e piedoso do que os carrascos, para longe da terra, colocando-as mais alto do que a terra, superiores à terra, porque esta se mostrou indigna de as receber no seu seio. Levou-as o vento no seu beijo puro, para o Céu, para junto dos astros e dos anjos, para o coração infinitamente misericordioso de Deus. E cada partícula dessas cinzas é uma estrela na eternidade...
Tanto quanto é lícito dar crédito às agências a soldo das Democracias vencedoras, os enforcados de Nuremberga morreram como homens, como soldados e como alemães. As suas últimas palavras foram um adeus confiante à sua Pátria. Nesse adeus, está implícita uma ordem: resistir à tirania do invasor e ocupante; lutar pela independência, pela liberdade e pela grandeza da terra dos antepassados. Há muitas formas de resistir; há muitas formas de lutar - desde a resistência e luta violentas, até à resistência e luta camufladas. Todas são legítimas!
Tudo em Nuremberga foi hediondo, fora do âmbito estreito dos mártires. Hediondo o tribunal e o direito que se evocou; hediondo o julgamento e o processo que se adoptou; hediondo o noticiário e hedionda a doutrina dos pseudo-juízes. E como se isto não chegasse, houve a incineração e a dispersão das cinzas...
E os católicos do mundo inteiro, com as suas autoridades eclesiásticas à frente, desde o chefe supremo da Igreja até às hierarquias de cada país, assistem, silenciosos e quedos, à violação formal e solene do cânone1203 do Código do Direito Canónico!
Prescreve ele: «Fidelium defunctorum corpora sepelienda sunt, reprobata corundem crematione» (§1.º). Quer dizer: «Os corpos dos fiéis defuntos devem ser sepultados, sendo reprovada a sua incineração». E acrescenta no seu §2.º, que si quis novis modo mandaverit ut corpus suum cremetur, illicitum est hanc exsequi volvnatem, ou seja «Se alguém, de qualquer forma, mandar que o seu corpo seja incinerado, por ilícita não deve cumprir-se tal determinação». Em 19 de Maio de 1886, a Consagração do Santo Ofício, perguntada sobre ae licitum sit mandare, ut sua aliorumve cadavera comburantur, isto é, «sobre se era lícito mandar que os seus cadáveres ou os cadáveres dos outros fossem queimados» res-pondeu negative, que não. E o Papa, confirmando este decreto, ordenou aos bispos que instruíssem oportunamenteos fiéis acerca da detestabilem abusum humana corpora cremandi. (Denzinger & Bannwart, Echiridion Symbolorum, § 1863, e nota respectiva).
Lêem por outra cartilha os chamados juízes de Nuremberga e, não dando sepultura aos cadáveres que as suas mãos fizeram, nem sequer recolheram as cinzas dos cadáveres que as suas mão queimaram! Dispersaram--nas ao vento, e em segredo! E os católicos do mundo inteiro tomam conhecimento disto... e fazem-se cúmplices disto!
Entre os variados sentimentos em que me debato ao contemplar esta página horrorosa que acaba de escrever-se em Nuremberga - que não tem similar na História de todos os tempos e é a mais fulminante negação do espírito cristão - há um que domina todos os outros: o nojo que sinto pelo meu tempo, que é, simultaneamente, a vergonha inapagável de ser deste tempo!
Este tempo em que ainda vivo é o tempo dos monstros mascarados de santos.
Não sou monstro, não contemporizo com monstros, não me solidarizo com monstros, nem me calo diante de monstros!...

Alfredo Pimenta, A Nação, n.º 36, 26.10.1946

1 comentário:

Anónimo disse...

A instâncias do Nonas estive a ler os dois últimos textos que transcreveu sobre Wissemann. Após a leitura do seu conteúdo, só me ocorrem dois adjectivos. Extraordinário e comvedor.

Maria