segunda-feira, agosto 27, 2007

Karl Wissemann - X

Ainda voltando a Wissemann.

Uma das críticas maiores dos leitores desta série foi a de que o texto da imagem do Jornal Agora em que José O' Neill contava a história de Wissemann era de difícil leitura.

Mercê da magnífica disponibilidade de quem vocês calculam (só ele tem a capacidade para isto) eis o texto completo:

OS MEUS AMIGOS ALEMÃES

Neste meu trabalho, que escrevo por simples passatempo, têm surgido frequentes pretextos de aludir ao Alemães. A frequência de uma citação, pode fazer acreditar que, durante a guerra, ou antes dela, mantive quaisquer contactos com eles, lhes prestei algum serviço, ou fui pessoa da sua simpatia. Aqui garanto, publicamente, que não conheci um único alemão, nem antes nem durante a guerra, que nunca frequentei a Legação nem quaisquer serviços oficiais, que nunca visitei a Alemanha, a convite ou à minha custa (agora vou lá todos os anos), que nunca escrevi uma linha a seu favor durante a campanha ou antes dela (depois que a guerra terminou escrevi centenas de páginas). Antes, e durante a guerra, houve de facto muitos jornalistas portugueses (mais tarde germanófobos encarniçados), que receberam frequentes convites dos serviços de propaganda nazi, que os aceitaram, que encheram as páginas dos seus jornais com artigos de louvor, e que depois cobraram em dinheiro alemão o preço do reclame que fizeram. Eu, não. De resto, nem sequer era jornalista, que só o fui, e amador, quando já os Alemães estavam esmagados, presos ou enforcados, e os que viviam emigrados, tomaram eles que ninguém soubesse a que raça pertenciam. A minha simpatia germanista foi sempre desinteressada, como provei, defendendo a grande nação antibolchevista numa altura em que até os burros lhe davam coices! Ao contrário de muitos outros, dos tais que assinaram recibos de dinheiros recebidos dos serviços alemães, e que, sabendo esses recibos apreendidos, pelos Aliados, nos arquivos da Legação germânica, haviam passado a insultar, de castigo, a Germânia prostrada, para desfazer a má impressão que deveria ter causado ao vencedor a existência de tais recibos. Ao inverso destes salta-pocinhas da pena, só comecei a defender por escrito os Alemães um ano depois da guerrra terminada! E, ainda nessa data não conhecia um único alemão! Mas repugnava-me ouvir chamar ao povo «fronteiro da Europa», uma nação de 80 milhões de gangsters!
Os meus escritos que me valeram que os Espanhóis asseverassem que D. Quixote vivia em Lisboa, e os dois meus companheiros, sobretudo os de Alfredo Pimenta, Carlos Afonso de Carvalho, Manuel Anselmo, Joaquim Lança, Alberto Jerónimo, César Augusto, Francisco José de Brito, Parente de Figueiredo, Matos Gomes, Gonçalves d`Andrade, Manuel Saldida, António Matosco e outros, os desenhos impressionantes do espantoso realismo de Luís Andrade, e de Cunha e Costa, acabaram por sensibilizar de tal maneira alguns alemães, que viviam escondidos na sombra, cheios de pavor pela montaria de que eram alvo, que, um dia, conheci dois deles, os quais, apesar da sua gratidão para comigo, e de sentirem quando eu era amigo deles, nem em mim se confiaram inteiramente?
Na minha secretária da redacção encontrei um dia, uma carta. Não trazia selo, o que indicava que fora levada por mão própria, mas ninguém sabia quem fora o portador. Abria-a e lia-a. Estava escrita à máquina e não continha assinatura. Alguém me perguntava se me interessaria publicar uma série de artigos sobre os Julgamentos de Nuremberga. Em caso afirmativo, os artigos ser-me-iam entregues pela mesma via. Simplesmente, o anónimo correspondente não sabia como poderia eu dar-lhe uma resposta. Pensei no caso e lembrei-me de uma solução: publicar um anúncio no jornal, prometendo aos leitores, para breve, uma série de artigos sobre o Crime de Nuremberga, da autoria do nosso colaborador João das Regras. Como os artigos versavam temas de Direito, e o autor era para mim até então desconhecido, o nome de eminente jurisconsulto de D. João I ficaria bem. Pensei também na hipótese dos artigos não terem categoria intelectual suficiente: neste caso, o papel de João das Regras teria de desempenhá-lo o Dr. Alfredo Pimenta.
Com a publicação do anúncio, o meu anónimo correspondente compreendeu que me interessava a colaboração oferecida e mandou-me o primeiro artigo. Foi uma sensação! Depois veio outro e outro, até ao último. E eu sempre na ignorância do nome do autor! Entretanto, de todos os lados me pediam que esclarecesse sobre quem seria o autor, dos sensacionais artigos que uns atribuíam ao Prof. Cabral Moncada, outros, ao Dr. Alfredo Pimenta e a outros ainda.
Até que um dia o escritor Fernando de Campos, que, por vezes, também colaborava no jornal, veio convidar-me para tomar chá em sua casa. Estranhei o convite, porque o falecido escritor integralista não era muito das minhas relações, nem eu tinha por hábito tomar chá das 5 horas, para mais em casa alheia, embora acolhedora. Mas o distinto homem de letras tanto insistiu que fui. E em sua casa encontrei os primeiros dois alemães que conheci na minha vida. Uma deles era o meu correspondente anónimo, a quem eu pusera o pseudónimo de João das Regras!
Chamava-se o meu amigo João das Regras, Karl Wissmann, fora Adido de Imprensa em Vichy e em Lisboa, e não sei se ocupara outras posições de destaque na política do seu país. Só sei que era um homem magnífico, extraordinariamente culto, um verdadeiro chefe, com quem a sua pátria podia contar para se erguer, quando o vencedor se cansasse de cevar o seu ódio na carcassa do vencido. E precisamente porque era culto, valoroso, inteligente e jovem, era procurado com afinco pelo inimigo, que não sofria que ficasse vivo, depois da guerra, um alemão da sua têmpera! O companheiro de João das Regras era oficial do Exército, herói de muitas lutas, chamado Nasenstein, se bem me recordo, mas que se apagava na presença da forte personalidade do primeiro, seu irmão de infortúnio. Ambos viviam em Lisboa, onde os apanhara o final da guerra, escondidos de todos e da polícia, com nomes supostos e falsa nacionalidade, só saindo de casa à noite, porque até da própria sombra suspeitavam. E tinham razão para isso!
Pois estes dois meus amigos alemães, que apenas confiavam na família de Fernando de Campos, nem a mim divulgaram onde se acolhiam. Se o tivessem feito, talvez ainda fossem vivos! Encontrava-os todas as sextas-feiras, em casa daquela distinta família, e ainda hoje recordo os momentos inolvidáveis daqueles ansiados encontros semanais!
Mas o inimigo estava alerta, e procurava-os como se fossem malfeitores. Até que os encontrou, na pensão em que viviam, como cidadãos polacos refugiados. No momento da prisão, Karl Wissmann matou-se; Nasenstein quis fazer o mesmo, mas não teve tempo. Foi preso, levado para bordo de um avião, transportado com algemas para Hamburgo, metido num campo de concentração aliado, de onde escreveu passados meses, pedindo roupa, para não morrer de frio, antes do julgamento, que ainda demoraria, porque tinha trinta mil à sua frente!!!
Karl Wissmann foi sepultado no cemitério alemão de Lisboa. Junto do coval o Dr. Alfredo Pimenta pronunciou um comovedor discurso que fez saltar as lágrimas dos olhos de todos os presentes. Este discurso, de exaltação das qualidades morais de um homem que estava morto, quase assassinado, não foi possível publicar-se.
De Nasenstein nunca mais se soube. Não sei se escapou, se foi assassinado, após algum daqueles julgamentos que juízes de todas as nacionalidades, incluindo sululandeses se entretinham a fazer na Alemanha, por passatempo, depois da guerra.
Foram estes os únicos alemães que conheci. Por isso, quando certo tarado, com a carteira de jornalista, obtida por empenho, me classificou um dia de «germanófilo de proveitos», senti cá dentro tão grande ira que era capaz de o desfazer, se, naquela altura, o apanhasse «à mão de semear»!

José O`Neill

In jornal «Agora», págs. 1/11, 27.10.1962.

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa noite,
Seria possível facultar-me o seu endereço electrónico privado? Sou jornalista (ex-programa Grande reportagem da RTP, ex-provedor do leitor do Público, etc.) e precisava de lhe perguntar uma coisa (relacionada com um post seu).
Os melhores cumprimentos,
Rui Araújo
E-mail: alephj@hotmail.com