quinta-feira, outubro 04, 2007

DOCUMENTO PARA A HISTÓRIA

Em 14 de Setembro de 1974 Manuel Maria Múrias publicou no Jornal Bandarra o fabuloso texto que abaixo reproduzo. Lembro-me perfeitamente desse dia – sei que chorei quando li este libelo tão enormemente acusador e arrasador.

Também sei que o referido texto já foi anteriormente publicado no mundo bloguístico nacional. Só não me lembro onde. Por isso resolvi batê-lo à máquina e colocá-lo (também eu) na blogosfera.

Porque é um documento histórico obrigatório e que deve ser conhecido por todos os nacionalistas e patriotas de Portugal.

Múrias no seu melhor, sem dúvida. Mas um Múrias que soube (como ninguém) interpretar e descrever o fim histórico de Portugal que iria ser transformado “neste pais” (como eles dizem...).

Já seu Pai foi determinante para a história, ao redigir o Manifesto do Movimento do 28 de Maio. Que agregou, na altura, todos os patriotas portugueses. E é bom que isso se diga!

Manuel Maria Múrias inspirou-se no discurso que Shakespeare escreveu para Marco António, na tragédia «Júlio César». (coisa que os nossos copcães nem faziam ideia o que fosse... – o assunto é recorrente, os de agora também não sabem quem foi Orwell)

Duas semanas depois seria preso pela malta cavernícola dos COPCONs, que o arrecadou no “democrático estabelecimento de férias de Caxias” durante 14 meses (não nos esqueçamos que a famosa Amnistia Internacional declarou - em Novembro de 1974 - alto e bom som que em Portugal não havia presos políticos).

Para memória futura de todos os portugueses aqui vai a prova do crime:

“Frontaria da Assembleia Nacional. Manhã cinzenta e triste. A multidão sussurrante transborda do grande largo. Trazendo nos braços um corpo exangue, Marco António surge no topo das escadarias. Arenga ao povo.

— Amigos, Portugueses, compatriotas:

Trago-vos Portugal nos braços. Venho para os seus funerais — e não para o louvar. O mal das pátrias sustenta-se além da morte. O bem enterra-se com elas. Ninguém se lembra das glórias do Aragão, nem das da Navarra — nem sequer das da Sabóia. Recordam-se, porém, sensivelmente, os seus pecados... Seja assim com Portugal. Os drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro (três honradíssimos cidadãos) permitiram que vos falasse. Disseram eles que a nossa Pátria, em oito séculos de história, quase só se portou mal. Reconheçamo-lo contristadamente sem discutir: — os drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro são três grandes personalidades que nos restituíram a liberdade. Quem somos nós para os contestar?

Vós tínheis orgulho neste velho Portugal. Julgastes que era honra pertencer-lhe e acompanhar na memória a gesta dos seus santos e heróis, conquistadores e navegadores, que, mares além, nos tempos dantes, por todo o orbe, dilataram a Fé e o Império. Os drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro acusam-no agora da maior cobiça. Castigaram-no severamente. São três homens justos, três nobres, e honrados, e incorruptos cidadãos. Veneremo-los. Esqueçamo-nos do que nossos país nos ensinaram: — depois de Ceuta, largado mundo fora, Portugal, com uma ou outra excepcionalíssima excepção, só cometeu crimes. Paga hoje as suas faltas — faltas do povo e dos chefes. Do Infante, de Vasco da Gama, de Albuquerque, de Camões, de Vieira e de Mouzinho. Penitenciemo-nos. Até a Santa Madre Igreja, pela augusta voz dos nossos bispos, já se penitenciou. Porque não o faremos nós? Construamos humildemente, sem fumos de grandeza, o futuro que merecemos. Reduzamo-nos.

Durante séculos, no silêncio dos corações, rezámos a S. Francisco Xavier, a S. João de Brito e a S. Gonçalo da Silveira. Supusemo-los no céu, sentados à direita de Deus Pai. — Sabemos hoje de ciência certa que foram apenas agentes do nosso torpe imperialismo, do nosso orgulhoso amor à guerra, da nossa cupidez mercantilista. Isso, sabiamente, nos ensinam os drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro — três impolutos cidadãos, três homens sem mancha, honrados e verdadeiros campeões da liberdade. Que podem as nossas memórias contra a sua veracidade munificente?

Imaginámos (durante cinco séculos — imaginámo-lo apaixonadamente) que andávamos pelo mundo a continuar Portugal, cientes de ser essa a sua missão, o seu destino, a sua glória. Reconhecemos hoje pela voz honrada dos drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro — que por esse mundo de Cristo destruímos civilizações, arrasámos metrópoles, cometemos genocídios. Que as cidades, vilas e aldeias que erguemos não são nossas, mas de gente estranha — e que os povos nossos irmãos, trazidos para nós, em nós confiantes, eram traidores à Pátria deles que, em verdade e em boa hora, vai deixar de ser a nossa.

Com infinito orgulho, com altíssima devoção, sentimo-nos, centúria após centúria, o décimo terceiro apóstolo, povo do Espírito Santo, farol de palavra divina. Oh! O orgulho dos homens! A petulância das gentes! A hipocrisia paranóica! Fomos uns rapinantes sem escrúpulos, vorazes comerciantes, mercadores astuciosos, criminosos sem perdão, exploradores insensíveis, bandidos sem coração, ladrões desavergonhados, piratas do alto mar, canalhas sem remissão. Caridosamente, sem o afirmarem (para não nos chocarem mais) insinuam isso os drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Francisco Sá Carneiro — três eminentes senhores, fiadores da nossa liberdade, desta paz democrática, desta prosperidade que vamos a desfrutar. Devemos acreditá-los, e agradecer-lhes, e defendê-los. Reconheceram as nossas culpas — e andam a remi-las. Vão acordar Portugal da longa noite em que o adormecemos.

A partir de 1961, ferozmente dominados por Salazar (parolo seminarista, tortuoso financeiro...) vós acompanhastes ao cais os melhores de todos vós — e, em espírito, embrenhastes-vos, com eles, nos matagais africanos. Muitos deles regressaram ou mortos, e povoam inermes os cemitérios do rectângulo, ou estropiados, ou meio doidos. Vós julgastes que eles tinham ido defender Portugal e os Portugueses. Exceptuando os drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro — a maior parte de vós supôs que Portugal defendia o seu direito, e que as carnificinas de Angola, da Guiné e de Moçambique tinham sido perpetradas pela UPA, pelo PAIGC e pela FRELIMO. Sabemos agora que não; fomos nós os matadores, fomos nós os assassinos, somos nós os responsáveis, somos nós os grandes réus. A UPA, o PAIGC e a FRELIMO limitaram-se, honradamente, a proceder em legítima defesa, a reagir heroicamente aos nossos ataques cavilosos, às nossas agressões mal intencionadas, à nossa fúria colonialista. Não o confessando há treze anos, não abandonando Angola nessa altura — ofendemos a paz, a liberdade e a democracia. Quem quiser continuar Portugal — está contra o mundo inteiro, orgulhosamente só e nós queremos estar acompanhados, e ser cumprimentados, e aplaudidos, e cortejados, e bajulados por todos os deste mundo. Queremos ser Holanda, Suécia, Dinamarca ou Finlândia, gente respeitada, pacíficos produtores de margarinas, ricaços. Para isso nos encaminham gloriosamente os drs. Mário Soares, Álvaro Cunhal e Francisco Sá Carneiro — três sábios, e prudentes, e sensatos cidadãos.

Quisemos que as gentes achadas pelos mareantes fossem portuguesas. Honrávamo-nos com isso, julgávamos honrá-las. Deixamo-las agora entregues a si próprias, nuclear e financeiramente protegidas pelos Estados Unidos, pela União Soviética e pela China. Deixámos de as explorar; vamos poupar milhões. Seremos prósperos, e bem educados, e respeitados por todo o mundo civilizado e pela moral prevalecente. Vão elas deixar de ser portuguesas — vamos nós humilissimamente esforçar-nos por continuar a sê-lo.

Se eu tivesse as qualidades oratórias do dr. Mário Soares, a capacidade organizativa do dr. Álvaro Cunhal, a distinção aristocrática do dr. Francisco Lumbralles de Sá Carneiro — poderia ambicionar, talvez, conduzir-vos à revolta, mostrando-vos as cicatrizes sangrentas deste velho Portugal vencido. Mas eu sou, apenas, um pobre homem com poucos estudos e pouco pensamento, um desgraçado — e eles, três notáveis, honrados e proeminentes cidadãos. Têm o poder, a força e a vitória; prender-me-ão quando quiserem sem ninguém protestar; calar-me-ão. Vós, meus Amigos, meus amados Portugueses, meus queridos compatriotas, sede indulgentes comigo; parece que a alma me vai com o Portugal antigo. Já que não o podemos louvar — choremo-lo com honradez. Quantas vezes o aclamámos e o levámos em triunfo?

Alguém nos impedirá de o chorar?

O silêncio aumenta a velha praça. Acolá e além um soluço risca o muro da tristeza. O povo volta as costas à casa da representação nacional. 0 pano desce lentissimamente. Portugal, arfante, parece morrer devagar.”

1 comentário:

Anónimo disse...

Perdi agora mesmo um comentário onde chamava os bois pelos nomes aos verdadeiros traidores à Pátria, tal como o fez nas entrelinhas inteligentemente, esse Patriota e mente brilhante, MMM. Talvez o comentário tenha desaparecido por isso mesmo... Mas hei-de a ele voltar. Parabéns pelo artigo, que já tinha lido creio que no Blog de Francisco. Parabéns pelos textos que vai aqui escrevendo e pelos que vai transcrevendo.

Maria